Soluções ecológicas, Esgoto como Fonte de Recursos
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Ao longo das últimas décadas, a humanidade toda tem encarado esgoto como um problema que precisa ser tratado. Só que isso está partindo da lógica errada, porque o esgoto não é um problema, o esgoto pode ser uma solução para uma infinidade de coisas.
Se a gente parar para olhar afinal de contas o que é o esgoto? O esgoto não é nada mais que um fluxo constante de água com a presença de matéria orgânica, nutrientes e também, de energia incorporada, que pode ser aproveitada.
Isto tudo está à disposição em qualquer escala que a gente estiver trabalhando, seja de uma única casa, até um município inteiro.
O foco desse conversa é a pequena escala, o que você pode fazer na sua casa ou no seu pequeno empreendimento, para lidar com o esgoto de uma maneira mais inteligente.
Se a gente para para olhar uma casa ou um empreendimento como o organismo, vamos entender que existe um fluxo de saída chamamos naturalmente de esgoto. Este fluxo, então, é constituído de porções maiores ou menores de água e de uma certa concentração de matéria orgânica.
Esgoto Negro vs Esgoto Cinza
O que acontece é que do volume total que é produzido numa casa, mais ou menos 75% dele, é o que a gente chama de água cinza, e os outros 25% são o que a gente chama de água preta.
Somente esses 25% de esgoto negro (água preta) é que precisa ser efetivamente tratado. E dentro do nosso próprio corpo, se a gente olhar o nosso sistema excretor, entenderemos que existe um fluxo de recursos líquido, a urina, e um fluxo sólido, que são as fezes.
As pessoas procuram encontrar maneiras de gastar o mínimo possível para “resolver esse problema”.
Simplesmente se joga em buraco, em uma fossa negra ou, eventualmente, joga num córrego ou rio sem se preocupar com quem está adiante.
Então quando a gente está fazendo mau uso desse esgoto e acaba despejando em lugares inapropriados, e lidando de maneira inapropriada, a gente vai acabar contaminando o próximo usuário à frente.
E é sempre bom a gente lembrar que atrás da gente também vem gente!
Esgoto no ciclo produtivo
Então é hora da gente se enxergar como dentro de um fluxo, dentro de um ciclo, e se dispor a entrar em um ciclo virtuoso de gente que produz recursos, que possam ser reintegrados nos ciclos produtivos.
Ao longo da história, diversos povos souberam lidar com o esgoto de uma maneira muito mais inteligente que a nossa de hoje em dia, mesmo em pleno século 21
Se a gente pegar o exemplo relativamente recente de vários países do sudeste da Ásia, nos quais as áreas de cultivo de arroz eram integradas às áreas urbanas, e onde existia um comércio, de fato, das excreções das pessoas, as “excreções noturnas”, e isso até ganhou um nome, era chamado de “solo noturno”.
Existiam, então, os comerciantes que recolhiam esses materiais e levavam até as barcas onde existia um comércio desse material que era levado para os campos de cultivo no entorno da cidade.
Então, através disso a gente criava uma relação direta de entrada de nutrientes para o campo e de retorno de alimentos para a cidade, e isso é um ciclo fechado.
Nas nossas cidades e mesmo na forma de lidar do agronegócio, os fertilizantes são trazidos de fora e os ciclos não se fecham, não só pelo esgoto que acaba contaminando a água e não volta para fertilizar as áreas de cultivo, como também os próprios restos de alimentos acabam sendo descartados, levados para o lixão e perdem essa oportunidade de voltar ao ciclo de fertilização.
Então, o crescimento populacional que a gente geralmente vê como um problema, na verdade pode ser uma grande oportunidade, porque quanto mais gente tem no planeta mais adubo está sendo produzido.
Cada pessoa produz cerca de 50 litros de fezes sólidas por ano e produz outros 500 litros de urina, essa natureza da urina facilita demais essa dinâmica de condução do nutriente, porque a urina é líquida.
Então a gente nem precisaria de água para conduzir esses nutrientes para onde a gente quiser aproveitá-los. Por outro lado, se olharmos a quantidade total de nutriente produzido por uma pessoa, temos um equivalente à produção de fertilizantes para cerca de 230 quilos de produção de cereal cada pessoa anualmente.
Quando olhamos então a quantidade total de nutrientes disponibilizados pelos nossos dejetos líquidos e sólidos, cerca de 94% dos nutrientes estão presentes na urina e só 6% estão presentes nas fezes.
Isto quer dizer que as nossas fezes podem ser usadas mais como estruturador de solo do que nutrientes, propriamente dito.
Dentro do ciclo da mobilidade desses nutrientes, o nitrogênio é um nutriente que está disponível na atmosfera e ele simplesmente ficar reciclando aqui dentro, hora pelo ar, e é descarregado no solo através das descargas atmosféricas, e isso é incorporado, é trazido pelas plantas através do crescimento delas, e, depois da morte, volta como nutriente para o solo e isto tem um ciclo que fica continuamente recirculando no planeta.
Ciclo do Fósforo
O fósforo, que é outro nutriente fundamental para o crescimento das plantas, no qual uma boa parte dos fertilizantes químicos são baseados, está disponível em rochas fosfatadas. Existe então um processo de mineração que retira esse material e transforma ele em fertilizante que pode ser aplicado nos cultivos.
Uma boa parte desse nutrientes quando aplicado sobre o solo é simplesmente lixiviado, é levado pelas chuvas para os córregos e rios e, no final das contas, todos vão parar no mar. Logo o mar acaba sendo um depósito final para toda essa fonte de fósforo que a gente vêm extraindo ao longo dos últimos bons anos. Com as práticas inadequadas da agricultura todo esse material tem a tendência de voltar para o mar causando não só um super crescimento de algas, mas principalmente toda uma mudança da cadeia alimentar em função desse super crescimento das plantas, dessa grande disponibilidade de fósforo,
como também gera uma escassez do fósforo no longo prazo dentro dos continentes.
Então o que a gente está explorando aqui é uma oportunidade de criar maneiras de reciclar o fósforo na sua própria propriedade, quer dizer, tudo o que é ingerido por você é retornado de volta para o cultivo dos alimentos ou de todas as plantas que você quiser.
Técnicas de aproveitamento de recursos do esgoto
Antes de falarmos em técnicas é importante falar sobre alguns conceitos que vão nos guiar para a escolha daquelas que são mais apropriados para cada contexto, porque não existe a melhor técnica, existe aquela mais apropriada para cada um dos diversos contextos em que cada um de nós se encontra hoje.
O primeiro deles tem a ver com a cultura do lugar, a cultura das pessoas que vão usar o sistema, que vão dar descarga no vaso, ou que vão estar usando essa infraestrutura. Então o sistema tem que estar de acordo com a base cultural dessas pessoas.
Na imagem abaixo mostro a vocês um braço de um assento de um vaso sanitário no Japão.
Vocês vêem aí diversos botões. Um botão com música, um botão com, esguicho de temperatura no bumbum, um bidê, um volume de som para o momento da descarga, uma musiquinha de fundo…
Imagina como estas pessoas lidariam com um banheiro seco, por exemplo? Como é que essas pessoas lidariam com um assento em que elas simplesmente levantam a tampa e ali dentro não tem uma água cristalina, transparente, não tem musiquinha, não tem o esguichinho de água quente?
Então a gente precisa apropriar, a gente precisa adequar essas técnicas de acordo com a cultura local, não só das pessoas que vão usar, mas também das pessoas que vão operar os sistemas. Porque no caso aqui a gente está falando do usuário, mas tem a outra ponta do sistema onde vai acontecer o gerenciamento destes fluxos de materiais.
Outro fator importante é o clima. Você pode usar uma técnica incrível num lugar e de repente pode querer transportar essa técnica para outro lugar em que ele vai ser completamente inapropriado, simplesmente em função do clima.
Veremos o exemplo do banheiro seco mais adiante e vai ficar muito fácil da gente entender isto.
O tipo de solo também influenciase você vai utilizar algum sistema de infiltração de água no solo depois do uso, se o seu solo tem maior ou menor capacidade de infiltração ele também vai ser mais ou menos adequado para o sistema que você vai usar. Se você tem um lençol freático muito próximo da superfície do solo, você tem que considerar isso como um aspecto determinante. O ideal é que exista uma distância mínima de 1,5 m entre o ponto de aplicação da água depois de purificada até o lençol freático, para que não haja nenhum risco de contaminação. Então, se você está num lugar onde o lençol freático é muito raso, sistemas de filtração são mais delicados e são mais exigentes, porque vai precisar que a qualidade da água seja muito melhor.
Se você tem menos ou mais água, isto vai mudar a técnica que você vai usar, ou melhor, vai mudar o leque de técnicas possíveis para você usar.
A disponibilidade de espaço também vai te limitar principalmente se você quer usar grandes sistemas aquáticos para a produção de peixes, para a produção de plantas… você vai ficar mais ou menos limitado em função disso (espaço e finalidade). E, também, o teu objetivo. O que você quer, afinal de contas, com este teu sistema? O que você quer fazer com estes nutrientes, com esta energia, com este fluxo de água?
Escolhendo a técnica mais adequada para você
A escolha da técnica vai ser feita em função desta combinação de tantas variáveis.
Para lugares onde o lençol freático é alto, onde a disponibilidade de água eventualmente é pequena e onde você quer lidar com seus nutrientes sem água, o banheiro seco é uma ótima alternativa.
Banheiro Seco
O banheiro seco permite que você reconstrua o ciclo de nutrientes na sua propriedade. Ele faz com que o teu alimento, que você cultivou, seja devolvido em forma de nutrientes para o solo através do processo de compostagem dos teus recursos.
Existem diferentes formas de você construir um banheiro seco.
Desde um modelo que talvez seja o mais conhecido no Brasil, que é o modelo de câmara ou banheiro seco compostável, em que você tem uma câmara de compostagem logo abaixo do assento então à medida que você vai fazendo o cocô e vai adicionando serragem, este material todo fica acumulado dentro da câmara de compostagem e, com o tempo, ele mesmo vai se transformando em adubo.
Mas aí tem uma dica importante! Lembra que falammos sobre a questão do clima?
O banheiro seco é um caso clássico desta influência, e aqui eu mostro duas imagens para vocês.
Uma destas imagens mostra um banheiro seco com duas pessoas, o Bira e o Andrey, lidando com o material já bastante decomposto na saída da câmara de compostagem.
E embaixo vocês veem um banheiro, também de câmara, do tipo pintado com chapa preta em cima, lá na Bahia, com o Albertinho (um parceiro lá da Bahia, um parceiro de Salvador), apresentando.
E a diferença principal que a gente vê, não está na técnica e na forma construtiva,
está no resultado do processo de compostagem. Porque este sistema na Bahia estava basicamente desidratado, ele não estava cumprindo a função de compostagem, mas tinha virado praticamente um banheiro desidratador. E isto não é o que a gente quer, porque se a gente pega um material desidratado, ele vai ter pouquíssima função como fertilizante, de fato, para o solo.
Existem quatro variáveis importantes para o nosso processo de compostagem:
A relação carbono e nitrogênio, temperatura, oxigênio e umidade.Então, quando depois do uso você adiciona um tanto de serragem ou cinza, na verdade você está jogando uma quantidade de carbono que vai regular a quantidade de nitrogênio presente nas tuas fezes. Isto vai criar uma relação de carbono e nitrogênio apropriada para acelerar o processo de compostagem.
A serragem que se usa geralmente é uma serragem grossa. É preferível usar material grosseiro, que seja palha picada ou folha picada, porque isto vai adicionar volume e vai permitir que a oxigenação deste composto aconteça de uma maneira mais apropriada e continue promovendo uma aceleração deste processo de compostagem.É preciso também que ele esteja um pouco úmido, nem de mais e nem de menos. Se ele tiver menos água ele vai desidratar, como vimos na foto da Bahia, e se ele tiver com muita água ele corre o risco de entrar em um processo de decomposição anaeróbica, e isso a gente vai sentir pelo cheiro.
A decomposição anaeróbica produz um gás que tem em sua composição o gás sulfídrico (enxofre), e este cheiro do enxofre é muito típico. Você vai sentir um cheiro de ovo podre. Então, se tiver cheirando muito forte o teu compostor, você já sabe que provavelmente ele está úmido demais e isso afetou esta dinâmica do processo de compostagem.
E também tem a questão da temperatura. Dentro dessas variáveis todas, ainda que a gente esteja procurando criar condição para que o composto aconteça da maneira mais rápida possível, por outro lado, é importante que essa compostagem aconteça de uma maneira eficaz, quer dizer, queremos que exista uma qualidade deste composto, que ele seja seguro, que este composto possa ser usado nos seus cultivos sem trazer problema algum.
E dentro do processo de compostagem existem diferentes fases de temperatura porque o processo é esotérico, ele libera calor, e logo no início ele tem uma elevação de temperatura grande, chega a 60, às vezes a 70 °C, e permanece nessa temperatura por alguns dias.
E como a gente vê, a destruição de vários dos patógenos mais resistentes, o E. coli especificamente, acontece depois 60 minutos nessa temperatura de 60 °C. Então, se a gente tem um bom processo de compostagem, a gente garante a sanidade deste composto também. Mas o mais recomendado é que não seja feito para as hortaliças, que seja feito para outros cultivos.
Esse tempo de descanso do composto é mais importante, ele vai nos levar a uma condição de segurança desse composto maior do que a própria elevação de temperatura.
Agora que a gente já separou as fezes dentro da câmera de compostagem, dentro do teu banheiro seco, a gente pode também pensar em aproveitar essa urina que, como eu disse lá atrás, é uma fonte riquíssima de nutrientes.
Utilização da Urina na fertilização do solo
Como é feito isso? É simples! Todos nós temos uma saída de líquido diferente, então esse material, a urina pode ser diluída em 1 parte para 10 de água ou pode ser conservada e armazenada por pelo menos seis meses. Estes seis meses é uma sugestão de segurança, para que aconteçam alguns processos de mudança de pH, que vão fazer com que quaisquer vírus, que poderiam estar presente na urina, sejam mortos.
Na verdade, a urina é estéril, a não ser que a pessoa esteja doente, aí sim pode ter alguma transmissão de vírus, mas de maneira geral é um líquido bastante seguro. Além das coletas nos mictórios, já existe hoje em dia alguns tipos de vaso que permitem a coleta em separado do fluxo sólido e do fluxo líquido.
Na imagem abaixo, vemos a referência de um assento que está instalado no banheiro na Agência de Cooperação Alemã, a GIZ, onde eles fazem alguns estudos para a recuperação dos nutrientes desse prédio, desta instalação.
E abaixo temos imagens também de uma pesquisa de um senhor chamado Peter Morgan, que está disponível neste site, Aliança pelo Saneamento Sustentável (SuSanA), em que ele fez um estudo sobre aplicação de diferentes concentrações de urina para cultivo de milho.
A mesma semente de milho, aplicada no solo no mesmo dia, sob as mesmas condições de insolação e rega, e vocês veem a enorme diferença que tem as espigas no final do cultivo.
A imagem da direita uma espiga bem mirrada, poucos grãos, zero de urina e a espiga da esquerda com quase 2 litros de urina aplicados ao longo de todo o cultivo. A dica é: se você for fazer aplicação em hortaliças, tem que ter um cuidado porque tem que existir, pelo menos, 1 mês de distância entre a sua aplicação e a ingestão do alimento fertilizado.
Utilizando o esgoto cinza na irrigação de frutiferas
Então se a gente recorda que 75% de todo o volume de água servida produzida na casa é água cinza, que é aquela água de chuveiro, de lavatório, de máquinas de lavar, de pia… essa água é uma água sem presença de patógenos, portanto não é uma água que precisa ser necessariamente tratada.
A não ser que você tenha uma condição muito específica de um lençol freático elevado, se não não for o caso, é uma água que você pode usar para fertilizar diferentes ambientes do teu terreno.
Então, você pode imaginar, por exemplo, que à medida que você vai tomando banho a cada 1 minuto de banho você produz mais ou menos 10 litros de água, entre 10 a 15 litros.
Quer dizer que você, em 5 minutos, tem pelo menos 50 litros de água, que poderia estar sendo usada para irrigação de uma frutífera qualquer ou de algumas frutíferas.
Pensa na jabuticaba, pensa cítricos de uma maneira geral, pensa pitangui [árvores do clima tropical brasileiro]. As nossas nativas típicas de matas ciliares são plantas que gostam de água cinza, porque elas gostam de ambiente úmido e alcalino. Então faça um estudo dessas árvores de acordo com o teu próprio clima e aí você vai entender quais árvores você pode usar aí.
E, olhando a natureza destas diferentes fontes de água, você percebe que tem algumas fontes de água que estão em qualidade apropriadas para um reuso direto, logo na sequência, quer dizer que ela não precisa de um tratamento propriamente dito.
Nessa imagem vocês veem um caso de uma escola municipal em Ubatuba, na época eu estava estudando um projeto com uma ONG local, a ASSU, e existia uma demanda da direção da escola, era até uma reclamação, porque de um lado da parede existia uma pia onde a água estava sempre sendo produzida, a molecada lavava a mão ou bebia e esquecia a torneira aberta, muitas vezes, e na parede de trás existia um mictório.
E a sugestão foi simplesmente de ligar a saída de água da pia no mictório, de forma que a água já lavasse e desta forma a gente dispensaria a água que era usada dentro do mictório.
Cada um dos cômodos pode estar levando essa irrigação para áreas diferentes. Então você pode ter a água da sua cozinha irrigando algumas frutíferas na frente da face oeste [isto no hemisfério sul do planeta], por exemplo que daí você tem um sombreamento do lado mais quente da casa e ao mesmo tempo você tem uma produção de frutos por ali, facilmente acessíveis.
Se você começa a computar, se cada pessoa consome mais ou menos 150 litros de água por dia esta proporção de água cinza seria de mais de 100 litros por pessoa, então é uma grande quantidade de água que pode ser usada para esta aplicação.
Este artigo é a transcrição de parte de um vídeo riquíssimo em detalhes do canal Fluxus Design Ecológico, veja esse e mais conteúdos através do link https://www.youtube.com/channel/UCq6Mm5ZnpEtrmLV5alRVlMg